“É a missão de todos os agentes do sector trabalhar com os olhos postos no futuro”

O setor do turismo constitui uma das áreas cuja sustentabilidade foi fortemente ameaçada pelo surgimento da pandemia. Para compreender melhor o comportamento da atividade turística atualmente, a Start-PME falou com o Secretário Regional dos Transportes, Turismo e Energia, do Governo Regional dos Açores, o Engenheiro Mário Mota Borges.

Quais considera serem as principais consequências da pandemia para a atividade turística?

A pandemia apanhou todos os destinos turísticos do mundo, sem exceção, desprevenidos e completamente despreparados para enfrentarem, em primeira instância, a paragem abrupta de todo o setor e, seguidamente, a gestão das questões sanitárias associadas ao processo de retoma. Na realidade, estamos a falar de uma mudança de paradigma que aconteceu repentinamente e que, provavelmente, não seria sequer concebível ou considerada provável. Naturalmente, que o mercado começou logo por sentir o cancelamento de reservas e, em consequência, a quebra drástica dos fluxos turísticos e das dormidas, que acarretou a quebra de receitas e um efeito que se propagou a vários setores económicos, dada a transversalidade do turismo. Foram muitas empresas atingidas de forma muito severa.

Mas isto foi apenas o princípio, pois nestes últimos dois anos, já muito mudou. Com o desolador ano de 2020, o setor do turismo foi vítima de uma “fuga” de profissionais para outros setores, que ofereceram uma oportunidade a quem se viu privado de fontes de rendimento “do dia para a noite”. Atualmente, esse é um dos grandes desafios que o setor tem em mãos em todo o mundo. Ao nível dos transportes, também se registam sérios desafios, incluindo transportadoras aéreas em grandes dificuldades, mas também procedimentos de viagem e controlo jamais testemunhados. Incluem-se os testes, as questões operacionais, os certificados digitais, agora o PLF (Formulário de Localizador de Passageiros).

Ademais, outras mudanças desafiantes para o setor incluíram a pressão sobre a política de cancelamentos, o crescimento do last minute booking ou a preferência por viagens mais individualizadas. Tudo isto traz desafios estruturais, por exemplo, a operadores turísticos especializados em grupos, mas todo o setor sente a pressão destas alterações. Considerando a evolução da pandemia e aquilo que tem representado em diferentes épocas do ano, teme-se que a sazonalidade ainda seja mais pronunciada no futuro se continuarem a surgir variantes ou vagas ou qualquer outro fator que dificulte ou inviabilize a viagem, por exemplo, nos períodos invernais. E há, ainda, a exigência da segurança sanitária, não só pelos viajantes, mas também pela imposição legal de cada País ou imposição técnica e operacional de infra-estruturas fundamentais, como aeroportos e portos. Tudo isto são consequências da pandemia e, por sua vez, produzirão outras consequências. Veja-se a falta de confiança que ainda subsiste e se estima que venha a perdurar e o impacto que isso tem na retração dos fluxos turísticos internacionais e na escolha de destinos mais próximos.

Considera que a atividade turística irá recuperar em pleno dos obstáculos que enfrentou durante o período pandémico?

Apesar da imprevisibilidade destes tempos e das incertezas relativamente à evolução da situação pandémica que ainda persistem, há sinais que apontam para uma tendência positiva a médio prazo, até porque se têm feito progressos no combate e na convivência com a pandemia, nomeadamente com a vacinação, em modelos de operação e até de comportamento e relações interpessoais. Certamente que em todos nós, tanto no setor público como no privado, há a vontade que a atividade turística recupere a sua normalidade, logo que possível, mas com a consciência que o futuro imediato não será igual ao passado recente e que o setor do turismo e das viagens não será o mesmo.

A conjuntura pós-pandémica vai continuar a desafiar-nos a todos a um nível de esforço nunca antes vivido, no que diz respeito à nossa sustentabilidade económica, até porque a agressividade competitiva entre destinos vai crescer e será necessário responder a mais desafios que vão crescendo em complexidade e exigência. Aliás, há alterações que se antevêem no quadro das orientações da União Europeia que implicam mudanças estruturais em todo o setor, nomeadamente ao nível digital, energético e ecológico. Não obstante, temos a convicção que a atratividade de destinos não massificados e de natureza, como é o caso dos Açores, onde se garante uma experiência em segurança e de qualidade, destacar-se-á, num cenário pós-pandémico. A Região, até pela sua juventude enquanto destino turístico, tem as condições para recuperar rapidamente o nível de desempenho anterior ao Covid-19 e conquistar cada vez mais o mercado internacional.

Qual o comportamento apresentado pelo setor do turismo no período pós-pandemia?

Apesar do cenário de pandemia ter vindo a evoluir positivamente, a verdade é que a situação continua a condicionar muito fortemente o turismo, nomeadamente as viagens para destinos mais distantes. Isso, para os Açores, significa que o mercado nacional recupera mais rápido do que os mercados emissores estrangeiros. É, por isso, precoce assumirmos que já estamos em pleno num período pós-pandemia, tal é a instabilidade da sua evolução, pois, tal como se viu recentemente com o surgimento da variante Ómicron, rapidamente há retrocessos na circulação internacional e consequências imediatas nas reservas de transporte e alojamento.
Não obstante, em 2021 já foi muito mais fácil viajar e os números refletem uma forte tendência natural de crescimento em relação a 2020. É uma tendência que, de alguma forma, já se esperava, dada a situação incomum do ano passado, mas, na realidade, o desempenho deste ano está a superar as melhores expectativas que se podiam ter no início do ano, ou até no início do verão, quando ainda existiam muitas dúvidas e surgiram obstáculos inesperados adicionais, como a exclusão de Portugal das listas verdes de Alemanha e Reino Unido.
Os dados estatísticos mais recentes, disponíveis até outubro deste ano, confirmam esta tendência de crescimento na Região. Relativamente ao período homólogo de 2020, e apesar de ainda estar cerca de 38,2% abaixo dos números de 2019, as dormidas na Região cresceram 117%. É um número muito superior ao registado nas dormidas a nível nacional, que foi da ordem dos 31%, o que é manifestamente animador para o turismo açoriano e cria boas perspectivas para 2022.

Que medidas deveriam ser implementadas para assegurar a sustentabilidade do setor do turismo, especialmente num país como Portugal, tradicionalmente vocacionado para a atividade?

O nosso País estava a trilhar um caminho de verdadeiro sucesso no turismo. Estávamos no topo dos melhores destinos do mundo e a ganhar uma notoriedade e uma atratividade crescentes e sólidas. Neste momento de dificuldade internacional, é importante não deixar o mercado esquecer essas qualidades e a especial atratividade do destino. Não obstante, para além do trabalho de promoção, é fundamental não esquecer o “tecido vivo” que faz o setor do turismo, ou seja, as pessoas e as empresas. Após as intervenções de urgência para assegurar a sobrevivência no curto prazo, é a missão de todos os agentes do setor trabalhar com os olhos postos no futuro a médio e longo prazo, mas implementando já medidas de transformação competitiva do setor. É vital acompanharmos o que vai acontecer no resto do mundo. Temos que trabalhar muito na atração e retenção de talento, na qualificação e requalificação de profissionais, mas também em inovação, em digitalização e em reformulação dos modelos de negócio. É importante termos empresas e instituições mais consolidadas e sustentáveis, na verdadeira aceção do termo, capazes de criar valor para a sua atividade, comunidade e para todo o setor.

Nos Açores, num primeiro momento, o Governo Regional trabalhou para criar mecanismos financeiros de apoio às empresas do turismo, procurando atenuar o impacto negativo desta crise, de forma a garantir a manutenção da capacidade produtiva e do emprego, tanto quanto o possível, de modo a que houvesse capacidade de reação o mais rapidamente possível e de forma oportuna, em função da evolução da situação epidemiológica nacional e internacional. Do mesmo modo, e já projetando o reinício da atividade, procurou-se atuar no sentido de preparar as empresas para retomarem a sua atividade da forma mais segura, tanto para a população local como para visitantes. Paralelamente, foram e estão a ser preparadas diversas iniciativas de estímulo ao mercado e de adaptação a novas práticas e orientações estratégicas da União Europeia.

Enquanto não ultrapassarmos na plenitude a crise pandémica, muitas das medidas que venham a ser implementadas com vista a garantir a sustentabilidade do setor serão, provavelmente, no sentido de reforçar o que já tem vindo a ser feito no que respeita a conciliar a sobrevivência económica das empresas com a segurança sanitária dos residentes e dos turistas. Simultaneamente, terá que ser mantida uma aposta consistente na promoção do Destino, junto de segmentos de mercados com especial apetência por destinos de Natureza e não massificados, como os Açores. Porém, terão que ser, também, devidamente aplicados os apoios financeiros provenientes da União Europeia, no sentido de promover as alterações estruturais que se impõem, nomeadamente ao nível da digitalização, sustentabilidade e qualificação do produto e do destino como um todo.

Foram apresentados alguns apoios financeiros com o intuito de revitalizar e recuperar a atividade turística. Qual considera ter sido o impacto destes apoios no setor do turismo?

Em primeiro lugar, para uma boa resposta a esta pergunta é importante perceber que apoios financeiros estão em causa, pois têm sido anunciados vários tipos de apoio, provenientes de várias fontes e com diferentes tipologias. É fácil, principalmente para quem não está familiarizado com alguns termos e com alguns processos, confundir todos os tipos de apoio que foram anunciados. De qualquer maneira, temos que considerar que há apoios para o imediato, que ainda se destinam a manter a capacidade produtiva e o emprego, ou seja, a acudir às empresas, que estão ainda em grande dificuldade. Por outro lado, há apoios anunciados que vêm para produzir ondas de choque no setor, visando não só a sua modernização, mas também a elevação competitiva. O que foi feito até agora, por melhor que tenha sido, certamente não será o suficiente, pois a travagem foi abrupta e parou o setor. Ficamos no zero, e a recuperação é lenta, perdendo profissionais e empresas, turistas e investimento. Há muito para fazer nos próximos anos.

Que benefícios podem trazer o Plano de Recuperação e Resiliência e o Portugal 2030 para o setor do Turismo?

São dois “mecanismos” distintos. Enquanto um contempla intervenções de curto, médio e longo prazo, o outro está sobretudo vocacionado para o investimento estrutural. Olhando para aquilo que são os objetivos definidos por cada um dos instrumentos, perspetiva-se que, em conjunto, se consiga revitalizar e quase reformular o setor do turismo. É recuperá-lo, torná-lo mais forte e projetar o seu desenvolvimento para o futuro de forma consistente. Porém, importa não esquecer que estes mecanismos virão acompanhados de exigências e de novas agendas, incluindo a Agenda Europeia para o Turismo 2030/2050 ou mesmo as implicações do pacote «Fit for 55». Precisamos de nos preparar muito bem, em termos estruturais em todo o setor, para acomodar estes grandes desígnios, que certamente trarão desafios, mas também novas oportunidades.

O Plano de Recuperação e Resiliência prevê uma componente relacionada com a transição digital, nomeadamente em processos de inovação e digitalização. De que forma esta componente pode ser aplicada ao setor do turismo?

A transição digital é algo inevitável. Aliás, atualmente, já vivemos numa dependência tão grande da tecnologia que é difícil revertermos essa situação. Com a situação pandémica, tal como noutros setores, o turismo teve que encontrar soluções digitais e adotar mecanismos que aceleraram a transição digital, por exemplo o Certificado Digital Covid-19 da UE ou plataformas como a My Safe Azores. As empresas também encontraram novas formas de servir o cliente, socorrendo-se da Internet of Things (IoT) ou de outras tecnologias para desmaterializar procedimentos ou mesmo para evitar outras tecnologias, como os touch screens, que passaram a ser um ponto de contágio potencial. Algumas destas novidades vieram para ficar e abriram caminho para outras realidades. Nas empresas, por exemplo, a comunicação digital, a interação digital com os clientes, e os marketplaces terão que ser cada vez mais relevantes, enquanto o big data será o dia-a-dia quer de empresas quer de decisores políticos. Será essa a base para todas as tomadas de decisão, muitas delas em tempo real, ou seja, teremos sistemas de planeamento e gestão inteligente com base em dados atuais e fidedignos. A virtualização da experiência turística, bem como a personalização de experiências serão também áreas que ganharão um grande impulso. Isso tudo implicará, por sua vez, alterações no modelo de funcionamento de aeroportos, de alojamento turístico, na visitação a atrações turísticas e unidades museológicas, e mesmo na restauração. Vamos, certamente, ter ainda uma desmaterialização de documentos de viagem e entrada em outros territórios.

O Programa Portugal 2030, centraliza grande parte dos seus apoios em dois programas fundamentais: inovação e a transição digital e transição climática e sustentabilidade dos recursos. Que projetos considera relevantes para a atividade turística no âmbito destes dois programas temáticos?

Essas duas áreas são precisamente aquelas onde a União Europeia mais se prepara para investir e exigir do turismo. Temos que estar muito bem preparados para acompanhar esse movimento. Dentro do Acordo de Parceria Portugal 2030, será integrado o Programa Operacional Açores 2030, que ainda está a ser ultimado, em função das orientações comunitárias e nacionais. Por isso, talvez seja prudente alguma contenção na especificação de projetos concretos. Porém, é importante reter que sistemas de gestão inteligente do turismo, que tirem o máximo de partido dos dados disponíveis, bem como investimentos que nos preparem para a transição energética, com particular evidência para o setor dos transportes e, sobretudo, na aviação, deverão merecer alguma atenção. É daí que advirão grandes desafios a médio prazo.

Qual foi o fundo comunitário mais utilizado pelas entidades turísticas nos Açores? De que forma esse fundo ajudou a mitigar os obstáculos inerentes ao contexto pandémico com que nos deparámos?

Se falarmos na especificação concreta de um fundo estrutural, terá sido, certamente, o FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, pois é aquele que sustenta vários mecanismos e incentivos destinados às empresas. Se falarmos em programa, o AÇORES 2020, cuja base assenta no FEDER, foi provavelmente aquele que permitiu dar uma resposta mais imediata, em função de alterações e reprogramações especiais autorizadas pela Comissão Europeia, tal como existiu para vários Estados-Membros e regiões.

Na sua ótica, o que pode acontecer no futuro da atividade turística em Portugal?

Se conseguirmos manter a dinâmica que estávamos a conseguir imprimir até 2019, há claramente boas perspetivas. Teremos que saber modernizar e acompanhar as tendências mundiais, teremos que investir na transição digital e ecológica. Mantendo tudo isto, temos as condições para emergir fortes e criar mais oportunidades para um turismo diferenciado. A sustentabilidade é um tema que está a ganhar destaque no setor e nós, como País, e em particular, na Região Autónoma dos Açores, já estamos na liderança nesse aspeto. Importa alavancar essa vantagem e criar condições que permitam consolidar essa imagem na mente do turista. Conseguindo-o, estaremos mais perto de retomar a dianteira e a dinâmica pré-pandemia.

Serão os fundos comunitários a chave para a sustentabilidade do setor do turismo?

Os fundos comunitários são determinantes e um meio para esse fim, mas a chave está, como sempre, nas pessoas. Temos que querer cumprir os objetivos que nos impõem, temos que ser proativos e diligentes, temos que saber aproveitar as oportunidades. O dinheiro, por si só, não resolve nada e este é um momento vital. Perante o conjunto financeiro mais ambicioso de sempre da União Europeia, ou nos conseguimos afirmar e aplicar o dinheiro onde ele é útil e criar mais valor, ou dificilmente teremos uma nova oportunidade para demonstrar a nossa capacidade de superação e liderança.

Quais são os projetos futuros para o Turismo nos Açores?

Os Açores ainda são um destino turístico jovem, que tem feito um trajeto de crescimento paulatino e assertivo. Há muitas coisas a fazer na Região e isso será sempre um trabalho em progresso e que nunca terminará. Neste momento, temos o objetivo de implementar novas versões do Plano Estratégico e de Marketing do Turismo dos Açores e do POTRAA – Programa de Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores que, em conjunto, definem o modelo de desenvolvimento turístico da Região. Estamos focados numa ótica de sustentabilidade e, por isso, pretendemos, dentro de três anos, atingir o patamar de Ouro da certificação como «Destino Turístico Sustentável», pela EarthCheck, de acordo com os padrões do Global Sustainable Tourism Council. Temos também o desígnio de imprimir uma elevação qualitativa ao nosso produto turístico e, por isso, estamos a preparar planos de estruturação e valorização de vários produtos e actividades, procurando experiências mais impactantes para quem nos visita.

Patrícia Neves

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2022-02-08T10:48:08+00:00
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